Violência, tortura e luta pela sobrevivência na vida e nas obras de Luandino Vieira
Violence, torture and the struggle for survival in the life and works of Luandino Vieira
Michela Graziosi
Sapienza Università di Roma
michela.graziosi@uniroma1.it
Recibido: 6/11/2022
Aceptado: 1/12/2022
DOI: https://doi.org/10.33732/RDGC.11.71
Resumo
Partindo de algumas notas biográficas e históricas para contextualizar Luandino Vieira, escritor militante que elaborou um novo cânone das literaturas pós-coloniais de língua portuguesa, refletiremos sobre a importância da memória como instrumento de resistência em condições de limitação da liberdade (Todorov, 1996), destacando o valor auxiliar da escrita literária como fonte histórica, central no âmbito da produção do escritor, quase inteiramente surgida no cárcere. Finalmente, através da análise de dois contos de Vidas Novas, será avaliada a função de testemunho da totalidade da sua obra, com foco na representação da violência exercida pelas forças coloniais sobre o povo angolano.
Palavras-chave:
Luandino Vieira, Memória, Escrita Literária, Violência, Tortura
Abstract
Starting from biographical and historical information aimed at contextualise Luandino Vieira, a militant author who has developed a new canon of Post-Colonial literatures in Portuguese language, the article will reflect on the importance of memory as an instrument of resistance in conditions of limited freedom (Todorov, 1996). In this perspective, the auxiliary role of literary writing as a historical source will be emphasised: in fact, it is central to the writer’s production, which he has almost entirely developed during his captivity in prison. Finally, through the analysis of two short stories of Vidas Novas, the testimonial function of his entire work will be assessed, focusing on the representation of the violence exercised by colonial forces on the Angolan population.
Keywords:
Luandino Vieira, Memory, Literary Writing, Violence, Torture
1. ENTRE LITERATURA E MILITÂNCIA: BREVE RETRATO DE JOSÉ LUANDINO VIEIRA
José Luandino Vieira, pseudónimo literário1 de José Vieira Mateus da Graça, é considerado um dos principais escritores contemporâneos de língua portuguesa e colocado entre os fundadores de uma literatura angolana de expressão própria. Nascido em 1935 na Lagoa do Furadouro, em Portugal, apenas com um ano de idade mudou-se com a família para Luanda, em Angola, uma das mais ricas colónias portuguesas da época, onde passou a infância e a adolescência. Russell G. Hamilton define-o como «um produto feliz do paradoxo do sistema colonial português» (1981: 130): filho de humildes colonos portugueses, criado em bairros populares de uma cidade mestiça, considerado entre os escritores mais autenticamente angolanos. A sua produção literária, surgida em grande parte no cárcere, caracteriza-se por um cuidadoso trabalho de reinvenção da língua literária: mesclando o português e as línguas nativas – nomeadamente o quimbundo2 –, o escritor faz com que os seus textos consigam dar voz a reivindicações e sonhos da população angolana, marginalizada e oprimida pelo contexto social de dominação portuguesa, descrevendo sem filtros a realidade do país e os seus contrastes.
Os intelectuais angolanos e portugueses que no início dos anos 50 participaram do denominado “Processo dos 50” partilhavam um conjunto de aspirações e objetivos interligados. Entre os impulsos de libertação perseguidos, próprios do período posterior à Segunda Guerra Mundial, destacava-se a reclamação de uma independência política e cultural que abrisse o caminho à evolução para um mundo em que a ordem colonial fosse apenas uma triste lembrança do passado. Portanto, o fil rouge que unia «[…] estes filhos da terra, os portugueses progressistas e outros intelectuais e trabalhadores […] era uma mistura de desejos, de ansiedades e de origens que projetava um mundo diferente, aberto ao diálogo e à expressão artística». (Ribeiro, Silva, Vecchi apud Vieira, 2015: 15) Uma das caraterísticas desta emergente literatura angolana residia no facto de que a elaboração intelectual, experimentada no âmbito da imaginação, quase sempre antecedia a passagem para a ação. (Desti apud Vieira, 1990: 140) Não por acaso, desde muito jovem Luandino Vieira participou do fermento intelectual e político trazido pelo Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (a partir de agora MNIA), cujas propostas foram assumidas pela revista Mensagem (1951-1952), proibida após a saída de apenas dois números. Preludiando uma literatura social e politicamente orientada, através da reivindicação da valorização cultural da terra angolana e do homem negro, os intelectuais que tomaram parte na experiência da revista romperam o silêncio imposto pela literatura colonial, tendo assumido e modificado o programa patriótico e regionalista do Modernismo brasileiro de 1922 com o lema “Vamos descobrir Angola”. De responsabilidade do Departamento Cultural da Associação dos Naturais de Angola, o periódico conseguiu influenciar quer o desenvolvimento cultural do país quer as futuras diretrizes políticas, tornando-se «um órgão cultural paradigmático da angolanidade» (Laranjeira 1995: 71). Em seguida o escritor publicou os seus primeiros textos na revista literária Cultura, da qual se tornou um dos principais exponentes, juntamente com outros intelectuais e artistas angolanos. Interessada na análise e na divulgação do património cultural angolano e africano, a revista dedicou trabalhos aos mais variados temas: raça, sociedade, arte negra, línguas africanas, música tradicional e poesia angolanas.3 A partir de 1957 até a publicação do último número, em 1960, Cultura adoptou um cariz revolucionário mais semelhante ao de Mensagem, prolongando e ampliando a ação desta última e do MNIA. Desta forma, o nacionalismo incipiente de Mensagem transformou-se em cosmopolitismo, testemunhando um incremento da consciência sociopolítica e uma abertura na visão do mundo dos intelectuais angolanos, abertos a culturas extra-africanas, sobretudo aquelas ligadas aos setores de pensamento que se colocavam na via do anticolonialismo.
Na vida de Luandino Vieira ao compromisso literário juntou-se cedo também o político, através de uma ativa participação no Movimento Popular pela Libertação de Angola (a partir de agora MPLA), nascido a partir do MNIA, em 1956. Acusado de realizar atividade anticolonialista, o escritor foi preso pela Polícia Internacional de Defesa do Estado (a partir de agora PIDE) – primeiro em 1959 e depois em 1961 – e condenado a 14 anos de prisão, que cumpriu inicialmente em Luanda (1961-1964) e em seguida no Campo de Trabalho de Chão Bom do Tarrafal, em Cabo Verde (1964-1972). Finalmente, em 1972 foi libertado em regime de residência vigiada, e passou a viver em Lisboa até à Revolução dos Cravos, que derrubou o regime salazarista em 1974. Embora tenha sido preso, o escritor ganhou numerosos prémios, entre os quais destacamos: o 1.° e 2.° prémios do Conto da Associação dos Naturais de Angola (1963); o 1.° Prémio D. Maria José Abrantes Mota Veiga (em 1964, pelo livro Luuanda, de 1963); o 1.° Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa dos Escritores (SPE), um dos poucos órgãos da resistência e da luta ao salazarismo ainda em vida (em 1965, ainda pelo livro Luuanda); o Prémio Camões (2006) – o mais importante galardão literário de língua portuguesa, no valor de 100 mil euros –, recusado pelo autor evocando «razões pessoais, íntimas».4 Em particular, o Grande Prémio da SPE, no qual nos concentraremos mais adiante, levou as autoridades do regime salazarista a promover uma campanha difamatória contra o escritor, apontado como «terrorista» por se encontrar preso no Tarrafal, assim como contra o júri e a própria Sociedade, que foi extinta naquele mesmo ano.
Após a proclamação da República Popular de Angola independente, em 1975, Luandino Vieira voltou a Luanda, onde se envolveu na reconstrução democrática do país, desempenhando diferentes tarefas: dirigiu o Departamento de Orientação Revolucionária do MPLA, até 1979; organizou e dirigiu o Instituto Angolano de Cinema, de 1979 a 1984; foi Secretário-Geral da União dos Escritores Angolanos, desde a sua fundação, em 1975, até 1980; foi Presidente da Televisão Popular de Angola, até 1978; foi Secretário-Geral Ajunto da Associação dos Escritores Afroasiáticos, de 1979 a 1984, e foi de novo Secretário-Geral da União dos Escritores Angolanos, de 1985 a 1992. Depois do colapso das primeiras eleições em 1992 e o recrudescimento da guerra civil, fortemente desiludido, o escritor deixou Angola e voltou a Portugal, a Vila Nova de Cerveira, na zona rural do Minho, onde mora ainda hoje, abandonando a vida pública e dedicando-se unicamente à literatura.
Entre as suas obras principais, assinalam-se coletâneas de contos, romances, novelas, textos infantojuvenis e um livro de memórias. Segundo Pires Laranjeira, a sua produção divide-se basicamente em duas fases, cuja linha divisória é constituída principalmente pela linguagem empregada: a primeira, que inclui as «estórias»5 de Vidas Novas (1975), mais perto do cânone literário e do português europeus; a segunda, baseada no livro Luuanda (1972), caraterizada por uma língua literária mais angolanizada, repleta de gírias, neologismos e outros recursos orais africanos, que fosse «propícia ao imediato reconhecimento da sua diferença». (1995: 121) Não por acaso, a importância considerável de Luandino Vieira, não somente no âmbito da história linguístico-literária de Angola mas também no da política do país, está ligada ao papel fundamental que desempenhou nos processos de desconstrução das narrativas coloniais, constituindo-se como base para a elaboração de um novo cânone das literaturas pós-coloniais de língua portuguesa.
2. NOTAS HISTÓRICAS: DA REVOLUÇÃO DOS CRAVOS À INDEPENDÊNCIA DE ANGOLA
A ditadura de António de Oliveira Salazar – que chegou ao poder inicialmente como Ministro das Finanças, em 1926, quando a Primeira República portuguesa foi derrubada por meio de um golpe militar, e depois como Primeiro-Ministro, permanecendo até 1968 – foi uma das mais longas e repressivas da Europa. O aparentemente moderado salazarismo foi durante muito tempo tolerado pelos governos ocidentais, que consideravam o ditador lusitano um bastião anticomunista. Na realidade, desde o início o poder autoritário e repressivo de Salazar não aceitava qualquer oposição: as eleições regularmente realizadas foram manipuladas e os esquadrões da PIDE torturaram dissidentes e cidadãos comuns.
O chamado Estado Novo foi constituído por uma série de leis constitucionais, entre as quais se encontra o Ato Colonial: remontando a 1930 e incorporado na nova Constituição em 1933, estabelecia a centralidade do colonialismo como «essência orgânica da nação portuguesa» (Duarte Silva, 2019: 127), formalizando as definições de «império colonial» e «colónias».6 De acordo com Maria Cristina Ercolessi, relativamente à gestão das colónias, a política de Salazar pode ser sintetizada pelos seguintes pontos: reafirmação dos princípios da centralização e da integração administrativa; recusa da ideia da autonomia das colónias; supressão do cargo de alto-comissário, retomando o de governador-geral; planeamento da criação de uma burocracia colonial profissional que substituísse os colonos e os afro-portugueses na administração local. (2011: 27) De facto, as colónias eram consideradas uma válida solução para a crise económica dos anos Trinta, cabendo-lhes o papel de produtoras de matérias-primas para o mercado português assim como o internacional. Aliás, além de serem importantes do ponto de vista económico e político, constituíam também um elemento fundamental da ideologia de regime para incentivar o orgulho nacional. A este respeito, incisivas são as palavras do Editorial de “O Mundo Português”: «A África é mais do que a terra que se explora agriculturalmente e é capaz de produzir aquilo de que a Metrópole precisa. A África é, para nós, uma justificação moral e uma razão de ser como potência. Sem ela seríamos uma pequena nação; com ela somos um grande país». (1935: 218 apud Bender, 1980: 25)
Em particular, nos últimos anos de vida do regime, entre várias razões, a situação precipitou-se também perante a recusa do governo de se retirar das colónias, onde se manifestavam as primeiras rebeliões. Já na década de 1960 os primeiros movimentos independentistas tinham alastrado em Angola, exigindo o costante envio de jovens soldados, contra a vontade do povo. Além disso, com o passar dos anos, as primeiras informações sobre os crimes coloniais cometidos pelos portugueses tinham começado a circular no mundo ocidental. Na noite de 25 de Abril de 1974, os portugueses que às 00:30 ouviram na rádio nacional a canção “Grândola Vila Morena”, composta por José Zeca Afonso, aperceberam-se de que algo de extraordinário estava para acontecer. Aliás, algumas horas antes, uma outra estação de rádio tinha transmitido “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho: tratava-se de um outro sinal do Movimento das Forças Armadas utilizado para dar início às operações que, de maneira incruenta, puseram fim à ditadura em poucas horas. As palavras iniciais desta canção de amor, de facto, sugeriam um adeus ao regime pronunciado pelos rebeldes das Forças Armadas; quarenta e oito anos antes, após um breve período de forte instabilidade política que tinha marcado a Primeira República, tinham sido também as Forças Armadas a estabelecer a ditadura. Naquele mesmo dia Marcelo Caetano – a quem Salazar tinha deixado o poder em 1968 –, por sua vez, entregou o poder ao general Spínola, colocado a cargo de uma comissão de militares (Junta de Salvação Nacional) constituída por sete oficiais das forças armadas: desta forma terminava a ditadura.
A partir do início do processo político pós-25 de Abril, a independência de Angola7 constituiu um dos assuntos mais problemáticos no âmbito da descolonização. Somente depois de crescentes pressões internacionais o novo poder português começou a formular uma posição mais clara, através da lei constitutional de 26 de julho de 1974. Nos três artigos que a compunham, afirmava-se que o estado português aceitava o princípio do direito dos povos colonizados à autodeterminação, independência incluída. Nesse sentido, a lei pretendia enviar um sinal aos movimentos anticoloniais e iniciar uma negociação que permitisse a interrupção da guerrilha. Na rica colónia portuguesa, onde havia a maior comunidade de colonos brancos, embora a situação militar fosse a mais favorável às forças portuguesas, os movimentos independentistas eram mais fracos, estando divididos e dependentes de apoios externos antagónicos, ocupados a combater-se, incapazes de alcançar um mínimo acordo político. De facto, entre 1961 e 1974 coexistiam a luta pela independência e a guerra civil que via o MPLA, dependente da URSS e da Zâmbia, contra a Frente Nacional de Libertação de Angola (a partir de agora FNLA), dependente dos EUA e da República do Zaire, e a União Nacional para a Independência da Angola (a partir de agora UNITA), ligada à China e aliada do governo português. Portanto, na luta comum pela independência, os movimentos angolanos procederam não alinhados, na base de diferentes cálculos políticos e alianças. A UNITA, o mais fraco militarmente, chegou primeiro a um acordo da cessação das hostilidades com Portugal a 14 de junho de 1974, enquanto o FNLA e o MPLA remeteram para o mês de outubro seguinte. Na prática verificaram-se manobras políticas para que cada movimento adquirisse posições de supremacia, o que levaria a um novo conflito interno, na perspetiva da independência. De acordo com MacQueen (1997: 29), três foram as fases principais do processo de libertação do país: a primeira, em que o FNLA estava em ascensão enquanto o MPLA aparecia ainda desorganizado (1961-1963); a segunda, quando o FNLA era enfraquecido por divisões internas e o MPLA organizava as suas forças (1964-1970); a terceira, em que, apesar das disputas internas, o MPLA conquistava o poder com a independência no dia 11/11/1975, depois de meses de conflito com os movimentos adversários.
Graças ao encontro de Mombaça (dias 3-5 de janeiro de 1975), organizado por iniciativa da Organização da Unidade Africana (a partir de agora OUA), realizou-se um primeiro passo para a aproximação entre os movimentos anticoloniais e a descolonização negociada. Nesta ocasião, os representantes da UNITA, do FNLA e do MPLA concordaram a entrada em negociações conjuntas com Lisboa, aderindo a uma série de pontos comuns: a exclusão de qualquer outro movimento ou partido angolano dos preparativos para a independência; a necessidade de um período de transição; a afirmação da integridade territorial do país; a garantia de que todos os cidadãos angolanos também gozariam de cidadania no novo estado (com referência aos angolanos de origem portuguesa).
A 15 de janeiro, durante uma cimeira em Alvor entre os representantes da UNITA, do FLNA, do MPLA e do estado português, foi assinado o acordo que havia de levar Angola à independência, estabelecendo as seguintes etapas: a criação de um governo de transição dirigido pelos representantes dos três movimentos, com o presidente em regime de alternância entre os três partidos, os quais ficariam no governo até a proclamação oficial de independência do país, fixada para o dia 11 de novembro de 1975; a obtenção da maioria de dois terços para a tomada de decisões; a tarefa do governo de transição de organizar, até o mês de outubro, uma eleição para definir a composição de uma assembleia constituinte encarregada de elaborar a nuova constituição; a formação de um exército nacional que integrasse as forças dos três movimentos políticos-militares. (MacQueen, 1997: 175) Todavia, a fraqueza do acordo era tangível, residindo em várias problemáticas: desprovidos de confiança recíproca, os movimentos eram incapazes de dividir o poder e deixar de lado os atritos; aliás, o tempo concedido para que se organizassem como partidos políticos era insuficiente, portanto não tinham as condições nem a força para poder governar.
Nos meses seguintes ao acordo, a situação militar deteriorou-se consideravelmente, agravada por uma corrida aos armamentos dos exércitos guerrilheiros que viram as suas capacidades militares aumentar graças aos fornecimentos de dinheiro e recursos de guerra de potências externas (China, Roménia, Zaire, EUA para a FNLA; URSS e Cuba para o MPLA). A OUA tomou mais uma vez a iniciativa e persuadiu as partes angolanas a reafirmar os compromissos assumidos em Alvor num acordo assinado em Nakaru, no Quénia, a 21 de junho de 1975. Todavia na capital recomeçaram os confrontos, culminando a 9 de julho e nos dias seguintes na batalha de Luanda, um dos acontecimentos mais significativos da corrida armada ao poder. O MPLA saiu vitorioso do confronto e conseguiu manter o controlo sobre Luanda até à data da independência. Como previsto, a fraca autoridade portuguesa desintegrou-se sob a pressão da militarização do conflito intestino angolano, mas também devido ao clima político da crise pós-revolucionária em Lisboa. A vitória do MPLA em Luanda foi confirmada com a decisão da FNLA e da UNITA de se retirarem do governo de transição a 9 de agosto. Alguns dias depois, a 22 de agosto, Lisboa suspendeu o acordo de Alvor, deixando-o ao confronto militar para definir quem conquistaria o poder, abrindo o campo a influências externas. A primeira guerra angolana resolveu-se com a vitória militar, política e diplomática do MPLA sobre os seus rivais, que consagrou a crescente capacidade da liderança de Agostinho Neto, tendo conseguido manipular a internacionalização do conflito em seu proveito. De qualquer forma, a independência, proclamada a 11 de novembro de 1975, não determinou o fim dos conflitos: o território angolano continuava dividido entre os três movimentos nacionalistas, dado que todos proclamaram unilateralmente a independência. O MPLA, o único movimento reconhecido pela comunidade internacional, depois de vencer a batalha por Luanda, declarou na capital a República Popular de Angola, pela voz de Agostinho Neto; o FNLA e a UNITA proclamaram, no Huambo, a República Democrática de Angola, que não conseguirá ver a luz. Em breve, a fragmentação que tinha conotado a luta pela libertação caraterizaria também uma outra terrível guerra civil, que iria durar 27 intermináveis anos, até 2002.
3. MEMÓRIA E ESCRITA LITERÁRIA: O VALOR DA LITERATURA COMO FONTE HISTÓRICA
No ensaio Les abus de la mémorie, Todorov reflete sobre o apagamento da memória, um perigo novo e desconhecido, cuja existência foi revelada pelos regimes totalitários do século XX. Esta estratégia foi praticada não só por meio da eliminação dos arquivos oficiais, mas também através do controle minucioso da informação e da comunicação. Para combatê-la, os opositores dos totalitarismos levaram ao extremo a recusa do esquecimento: dessa forma cada fragmento de reminiscência, até o mais humilde, tornou-se instrumento de resistência ao totalitarismo. Todavia isto determinou, especialmente nas democracias liberais da Europa ocidental e da América, um excesso de informações. Paradoxalmente, esta consequência transformou-se num novo instrumento de apagamento da memória cada vez mais rápido, restaurando a mesma dinâmica imposta pelos regimes totalitários e provocando o esvaziamento dos gestos de resistência.
De acordo com o teórico russo, a memória não se contrapõe ao oblívio, sendo sempre uma interação entre o apagamento e a conservação. Pelo outro lado, uma reconstrução integral do passado nunca é factível e a memória, inevitavelmente, torna-se uma seleção de acontecimentos, a partir da qual se estabelecerá o seu emprego. O elogio incondicional da memória – que acabou por tornar-se uma espécie de culto fim em si mesmo – assim como o desprezo ritual do oblívio são práticas nocivas que é necessário pôr em dúvida, para fazer com que ela não seja estéril. Aliás, em particular, é preciso interrogar-se sobre a forma como o passado irá ser utilizado e para que fim. Meditando sobre os critérios que permitem distinguir os diferentes usos da memória, Todorov finalmente reconhece a existência de uma sua forma «literal» – baseada na continuidade entre passado e presente, perigosa precisamente porque submete o presente ao passado –, e uma outra «exemplar», potencialmente libertadora, dado que permite utilizar o passado em vista do presente, transformando as injustiças sofridas num válido instrumento para combater as futuras. (1996: 45-46)
Transplantada para o presente através de uma seleção de eventos, ainda segundo o teórico russo, a memória organiza-se em torno de diferentes categorias de discurso: o da testemunha, o do historiador e o do comemorador. Entre estes, a testemunha é um indivíduo que, por meio de um trabalho solitário que pode sustentar-se através de documentos, recolhe as suas próprias lembranças para construir a sua identidade e dar um sentido à sua existência. Cada um de nós é testemunha da sua própria vida, cuja imagem é reconstruída omitindo, escolhendo e adaptando acontecimentos. Mesmo reconhecendo claramente a existência de um contraste entre a testemunha, animada pelo próprio interesse, e o historiador, cuja tarefa é restituir e analisar o passado não de acordo com a vantagem pessoal mas segundo a «verdade impessoal» (2001: 156), Todorov salienta também um ponto de contacto entre as duas atividades. De facto, embora os historiadores sejam críticos relativamente às recordações das testemunhas, estas últimas podem ser incluídas no espaço público, a fim de que sejam úteis não só para a sua própria formação mas também para a educação dos outros. De acordo com o teórico russo, o conflito que se estabelece entre as testemunhas e os historiadores8 pode ser resolvido considerando o discurso da testemunha complementar ao do historiador como fonte de riqueza, mesmo não sendo dominado da mesma maneira pela preocupação da verdade. (2001: 157)
No âmbito propriamente literário, a figura da testemunha converte as experiências pessoais e coletivas de dor e resistência num objeto artístico, num espaço de criação ou recriação para tentar transmitir de modo parcial mas significativamente a sua própria verdade, transformando a memória individual num instrumento coletivo de libertação e construção orientado para o futuro. Assim, a literatura torna-se uma fonte produtiva de perceção para a produção historiográfica, ao relatar, questionar e trazer a própria visão em relação a uma determinada dimensão espacial e temporal. Embora o escritor não persiga o objetivo de produzir história com a sua obra, fornece elementos significativos e inovadores, capazes de reconstruir o contexto histórico-social em que se inserem. A este respeito, Nicolau Sevcenko afirma que «a literatura fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos». (2003: 30)
Hoje como no passado, a escrita literária tem sido sempre um meio para testemunhar a violência e a falta de direitos, manifestando as suas infinitas possibilidades criativas mesmo em condições hostis de limitação das liberdades pessoais. Em particular a literatura de testemunho, produzida por escritores que vivem sob regimes ditatoriais ou que são prisioneiros, é constituída por relatos alimentados pela ação conjunta das lembranças, frequentemente traumáticas, e da incapacidade de esquecê-las: desta luta insolúvel deriva a necessidade dos homens de escrever para se libertar, para analisar as dinâmicas perversas em que estão envolvidos e combatê-las. A escrita, portanto, é alimentada pela memória, numa tentativa de escapar da alienação e da desumanização, como único contacto de cada um com o seu passado e a sua identidade, aquela identidade negada pelas diversas tipologias de opressores (o ditador, o colonizador). De facto, a memória sozinha não pode conter tudo, como reconhece Luandino Vieira em Papéis da prisão. Nesta obra de caracter fragmentário9, constituída por 17 cadernos – onde se encontram diários, correspondências, textos em quimbundo, cantos populares, anotações, desenhos, recortes de jornais – que cobrem quase a totalidade do tempo passado na prisão, revelando a vida nas prisões coloniais e as práticas repressivas da ditadura, o escritor explica:
Os apontamentos, o diário, surgem também porque percebi que embora tivesse sempre confiado na minha memória (tenho muito boa memória), havia coisas que eu tinha que escrever, até porque a memória não podia guardar isso tudo, e, portanto, como já escrevia para a clandestinidade fora da cadeia foi-me fácil entrar na cadeia e dizer «deixa-me continuar a escrever para a clandestinidade». (2015: 1045)
Então, a necessidade de anotar tudo – um hábito que o autor já tinha antes da experiência do cárcere – explica-se em virtude da importância vital da memória, na qual, todavia, é difícil confiar. E a experiência depravadora da prisão experimentada na primeira pessoa – especialmente no campo de trabalho do Tarrafal, conhecido também com os nomes emblemáticos de “Pântano da morte” e “Campo da morte lenta” – põe em risco ainda mais a faculdade de lembrar e de considerar-se humano: num contexto de desolação total, agravado por um clima tropical insuportável (calor durante o dia e frio de noite), pelo proliferar de doenças de todos os tipos, pela violência e pelo ódio dos guardas prisionais, onde a tortura quotidiana é representada pela morte que não chega rápida mas corrói aos poucos, impiedosa. (Francavilla, 2020: 6-7)
Desta forma, mesmo que fragmentária e em condição de precariedade – física e íntima –, a escrita torna-se um instrumento privilegiado para preservar e divulgar a memória, testemunhando ativamente a miséria dos colonizados, seres marginais, como esperança e resgate de um povo, na forma da criação literária que avança em paralelo, como observaremos, com uma recriação da linguagem. Através da leitura de Papéis da prisão assim como a de toda a obra do autor, em grande parte produzida na condição de clandestinidade e cativeiro, é evidente o papel fundamental que a literatura desempenha na sua vida pessoal, artística e militante. Escrever é um meio para fixar a memória, guardando pedaços da vida de um homem que assumiu a existência e a dor dos outros, companheiros de prisão, de ruas, de lutas. Partilhar a violência, as torturas, as ofensas padecidas através da escrita – a partir do memorialismo até a ficção, que têm sempre origem na observação de uma realidade iníqua – é um modo de lidar com o sofrimento e ao mesmo tempo não esquecer, através do auxílio de uma força vital nova que, justamente, nasce da combinação entre memória e escrita. Neste sentido, o título dos cadernos que constituem os Papéis (…Ontem, hoje, amanhã) é emblematico e abrange o espaço e o tempo de toda a sua produção, sublinhando uma verdade imprescindível: a memória guarda o passado, permitindo perceber o presente e construir um futuro mais consciente. Ao mesmo tempo ela é abrigo e evasão, instrumento de resistência para preservar a sua humanidade, a sua dignidade e a sua especificidade cultural. Conjugando o pessoal com o político, de facto, a memória do escritor articula-se num horizonte concreto de atuação política e cultural, fornecendo a sua contribuição para a formação da literatura da nação a partir das diversidades que a constituem (divisões identitárias e ideológicas, diferenças linguísticas), numa perspetiva mais ampla, de cunho universal. Sustentada pela substância da memória, a literatura é testemunho dum tempo de luta, criação e persistência de um grito de dor e sofrimento e afirmação de um desejo de possibilidades futuras, meio de conhecimento do mundo e construção de um outro mundo possível, ao alcance dos sujeitos oprimidos que finalmente se transformam nos realizadores da própria história.
4. VIOLÊNCIA E TORTURA: UMA LEITURA DE DOIS CONTOS DE VIDAS NOVAS
Vidas Novas consiste em oito contos, escritos de 28/6 a 28/7 de 1962, no Pavilhão Prisional da PIDE, em Luanda, no alvorecer da luta pela independência de Angola. A coletânea pretende dignificar os marginalizados de Luanda, configurando-se como «uma das primeiras manifestações de uma literatura subversiva dentro da categoria da expressão anti-ultramarina». (Hamilton, 1981: 134) Aliás, intenta também consciencializar os leitores relativamente aos métodos coercitivos exercidos na colónia durante a ditadura salazarista, focalizando-se nas condições desumanas em que se encontrava o povo angolano. A violência, nas suas formas multifacetadas, é uma característica imprescindível das histórias narradas, numa dúplice perspetiva: de denúncia e condenação, mas também de estímulo para reagir.
O conto que abre o livro, Dina, cujo título é constituído pelo nome da protagonista, configura-se como um válido exemplo dessa multifacetada representação da violência, pública e privada, que abrange todos os moradores do musseque10 onde se passa a história. Dina é uma jovem prostituta que acaba por viver um subtil e doloroso processo de metamorfose, experimentando diferentes formas de violência, sempre atuada pelo poder dos colonizadores: a violência sofrida com o próprio corpo diariamente, ao prostituir-se com os soldados, contra a sua vontade; a violência padecida como espectadora ao assistir primeiro ao homicídio dos pais, quando era criança, e depois ao de um velho desconhecido, provavelmente por ser considerado terrorista, no momento em que se passa a história narrada. Assim, a dor pessoal encontra uma dor anónima, fundindo-se num sentimento que abarca a coletividade: os mortos em questão são todos vítimas inocentes da mesma forma de opressão.
O tempo e o espaço da ação são claramente definidos desde o início da narração: o mês de maio de 1961, momento fundamental da organização da guerrilha angolana para atuar a libertação nacional; o musseque de Santo Rosa, onde os grupos de resistência da população angolana são constantemente perseguidos pela polícia repressora portuguesa. A precariedade do ambiente circundante e dos habitantes é imediatamente clara: eles moram em «cubatas pequenas e escuras» (1997: 13), onde metaforicamente guardam a tristeza que trazem consigo cada dia, voltando do trabalho extenuante. A única, fraca imagem de alegria é constituída pelas crianças que brincam nos quintais. Uma alegria subitamente posta em causa pela falta de segurança e de direitos básicos causada pelo controle repressor da polícia portuguesa11, indicado através da referência a termos e adjetivos que denotam elementos constitutivos de uma confusão terrorífica, num clímax crescente:
Mas também alegrar como então nesses dias assim, nessas horas de confusão das pessoas e das coisas, tiros dentro das noites, muitas vezes gritos de cubatas invadidas, choros e asneiras e mais soldados de metralhadora disparando à toa, nas sombras e nas luzes, nos gatos e nas pessoas? Alegria como ainda com esses olhos grandes, lá em cima da torre deles, de ferro com tinta de alumínio, que mijavam a luz amarela nas areias vermelhas dos musseques, despindo cubatas, sombras boas de cambular fregueses, dar encontro com alguém que lhe queria fora desse serviço dessa velha Mabunda […]. (1997: 13)
A protagonista é apresentada através de um dúplice olhar, em clara contraposição: o da madrinha Mabunda, que a repreende pela incapacidade de oferecer «serviços» bem feitos aos clientes, minimizando o clima de terror em que as duas estão envolvidas quotidianamente; o da própria Dina, consternada por aquele cenário horrorífico de violência gratuita e abuso de poder. Esta situação, cada vez mais insuportável, fará com que a jovem finalmente perceba no seu íntimo o surgimento de um conjunto de sentimentos fortes, vislumbres iniciais duma próxima mudança de caráter revolucionário. Mabunda não consegue compreender o comportamento da jovem e sente-se obrigada a desculpar-se com os clientes; aliás, não perde ocasião para lembrar à jovem a vantagem de casar-se com o Senhor Tonho, «um bom branco» (1997: 16) que fez promessa de torná-la feliz, assim que ela tiver dezasseis anos.12 Todavia, a intolerância de Dina com as suas obrigações cresce à medida que ela pensa nos horrores causados pela polícia, sempre detalhadamente expressos ao longo da narração, como no exemplo seguinte: «[…] pessoas estendidas na areia, no capim, nos primeiros dias da confusão, bocas apertas para o céu da manhã, olhos a mirarem as nuvens que já não viam, o sangue vermelho a ficar também negro, junto com a areia». (1997: 15) O nojo que ela começa a sentir quando se prostitui, na pele e na carne, assume a forma simbólica de «um bicho que não conhecia, não sabia, torcia-se, mexia, refilava» (1997: 15): a regressão a um estado animal é a consequência direta da violência brutal a que ela está continuamente sujeita.
Através da lembrança do cruel assassinato dos pais pela polícia, que antecipa o do velho com que termina o conto, observamos a trajetória da transformação da protagonista que, de pessoa vulnerável e insatisfeita com a vida proporcionada pela madrinha, torna-se um sujeito responsável das próprias ações e participante da resistência contra os abusos do estado. No presente como no passado, os tempos são sempre maus, a violência nunca acaba, o sofrimento não a deixa em paz: o que muda é a percepção dos novos sentimentos, de raiva e vergonha, que aumentam a sua sensação de insatisfação, a sua consciência de ser incapaz de aguentar mais. A lembrança que pertence ao passado é invocada pelo tempo presente através de uma outra, normal cena de confusão e abuso de poder: um velho negro assustado que corre, com os habituais tiros no fundo, tentando desculpar-se, pedindo ajuda e gritando «Não sou eu! Não sou eu!» (1997: 17). Ninguém parece ouvir este homem inerme e no tumulto «os perseguidores» (ivi), executores sem rosto da força bruta colonial, atacam-no com socos, pontapés e porradas de paus e pedras, num crescendo de fúria coletiva feroz, berrando e gritando, como numa festa macabra. Guiada pelo bicho que lhe roia dentro, como quando deitava no serviço com os soldados, Dina deixa de lado o medo e entra na bagunça para tentar defender o velho. Sente o seu corpo pisado, entre barro e poeira, quando chega o carro da polícia e todos fogem, com a excepção dela e do homem, imóvel, sem vida: «[…] os dentes arreganhados para o céu, a boca torcida para trás despejando sangue em cima dos cabelos brancos e a camisa aberta, mostrando o vermelho a correr no buraco do peito com a picareta sem cabo, espetada e suja». (1997: 18) Então, Dina corre para os polícias, insultando, afirmando o assassinato que viu, e acaba por ser espancada até desmaiar, no carro da polícia, trazida num lugar longínquo. A imobilidade que conota a protagonista desde o início da narração («Dina estava lá […] sentada na porta da cubata, coçando as pernas» 1997: 13), indicadora da sua passividade inicial, trasforma-se finalmente em ação, graças antes ao surto de emoções no seu íntimo – mencionadas aos poucos ao longo do conto – e depois através da explosão de gritos na última cena libertadora:
Mas um pequeno riso, teimoso como essa estrela que lhe mira no céu negro, acorda na cara dela, larga e inchada. Rezando parecia era domingo na missão, fechou os olhos e falou baixinho: - Nunca mais! Juro! Com estes gajos, nunca mais! E como assim o trovão do princípio da chuva, deixou sair num berro grande toda a raiva que lhe enchia na vida: - Nunca mais, juro!
O polícia ao lado do chofer, sem mesmo se mexer, falou só: - Tá xalada, a gaja!
E estava. Xalada e feliz dessa coisa nova a disparar dentro dela. (1997: 18-19)
A violência brutal e gratuita que conota toda a narrativa – a lembrada, privada, e a nova, quotidiana, universal – alimenta aos poucos a metamorfose da protagonista que, finalmente, se torna um sujeito ativo no presente, capaz de alcançar a sua integridade física e moral, concretizada na busca de uma integridade social, coletiva, e projetar propósitos para o futuro.
Prosseguindo a análise centrada no valor testemunhal da escrita e na representação das formas de violência exercida pelo poder opressor, é significativo um outro conto da mesma coletânea, “O fato completo de Luca Matesso”, dominado pela temática da tortura, que torna mais evidentes as reflexões políticas, sociais e culturais suscitadas pelo uso de atrocidades. Através da narração da violência sofrida no cárcere pelo prisioneiro político Lucas Matesso – chamado também de preso 16, com referência ao número da cela e ao anonimato ao qual são condenados os prisioneiros – é representada a vida carcerária dos presos políticos que combatiam ou eram suspeitos de envolvimento com grupos de combate ao colonialismo. O conto é dividido em três partes: a primeira focaliza-se nas figuras repugnantes dos torturadores (o chefe Reis, o diretor, e Artur, o guarda prisional), a segunda e a terceira são baseadas no interrogatório feito ao protagonista e na violência que lhe é infligida. Depois de ter ouvido o protagonista pedindo «um fato completo» (1997: 73) a sua mulher, um guarda informa o superior desta encomenda singular. Desde o início o guarda e o diretor são conotados negativamente, através de adjetivos e comparações que amplificam a desumanidade e a propensão para o exercício de uma violência gratuita: o primeiro é representado como viscoso («O guarda prisional veio lhe avisar, um sorriso de mentira colado na cara, com gosma da informação no director», 1997: 73); por sua vez, o segundo, repelente como um rato13, já antecipa o prazer da tortura gratuita que vai ser aplicada («O chefe fechou os olhinhos, pareciam eram de rato, e um sorriso mau agarrou-lhe nos lábios descoloridos, sentindo já alguma coisa ia passar com esse sacana do Lucas João Matesso»; «- Diga lá a novidade, carago! Está-me fazer água na boca!» 1997: 73). Mais adiante, ficamos a saber que em três meses de interrogatórios e torturas nada tinha sido descoberto em relação à suspeita ligação com o Kongo do preso14, e isto era um incómodo para o guarda, à espera dos exames para se tornar subinspetor. Ao mesmo tempo, então, na narração torna-se evidente que o preso é mantido na prisão por puro sadismo e também usado como oportunidade de ascensão de carreira:
- Penso, senhor inspector, que desta vez agarrámos uma ligação! […]
- Que diabo, Reis! Isto não tem pés nem cabeça! […]
- Senhor inspector… - tinha gaguejado, sentindo a cara ficar vermelha de vergonha e raiva – o gajo não tem sítio onde se lhe pegue. Estou à espera que recupere!… Mas o inspector não quisera mais ouvir-lhe as desculpas que estava arranjar, a cabeça cheia desse exame que chegava e uma raiva a encher-lhe o peito curto, uma vontade de rebentar à porrada esse cão do Lucas Matesso, fazer-lhe confessar qualquer coisa, nem que fosse mentiras não fazia mal. Era preciso apresentar o processo ao inspector, era a sua fama, a sua carreira que estava ainda em perigo. (1997: 75)
Por isso ri agora baixinho, satisfeito, esfregando as mãos contentes, engelhando a cara para esconder os olhinhos maus, pensando que sim, era agora que lhe caçava, esse tipo tinha esperado três meses e agora ia talvez receber algum recado. Já sentia o chicote a berrar em cima da pele do homem, os gritos, as desculpas que ele punha sempre, aquele prazer que lhe entrava no corpo quando acendia o cigarro e se encostava na cadeira para começar ditar no ajudante: - …declarou que… (1997: 75)
Em geral, as ações dos agentes de repressão refletem sempre também os seus interesses pessoais, dado que ambicionam alcançar cargos de melhor remuneração e, consequentemente, uma melhor posição social. Tudo isso, claramente, agrava a condição das vítimas, à mercê de sádicas arbitrariedades de qualquer tipologia. A ironia antecipada no início da narração, quando o diretor se pergunta porque o preso precisaria de um fato completo com o calor que havia (uma ironia amarga, pois ele acrescenta: «Ou o sacana pensa que o processo dele vai para tribunal?!», 1997: 74), atingirá um alto nível no final, onde descobriremos que «fato completo» é um prato típico angolano. De facto, o conto pretende também registrar as relações entre a linguagem do dominador e as diversas conotações semânticas que os dominados dão às palavras e às expressões de língua portuguesa em Angola. Neste sentido, a diversidade linguística do próprio idioma adquire várias funções, tornando-se fator de confusão e tentativa de interpretação de uma cultura dominada por meio da força e da violência, na perspetiva do colonizador, e instrumento de resistência cultural e política para os colonizados.
Na segunda parte da narração é apresentado o início do interrogatório singular ao qual é submetido Lucas Matesso. O chefe Reis tenta enganá-lo, dirigindo-lhe inusitadas palavras gentis («Não tinha respondido, burro com essas palavras, nos outro dias era só cão, negro e muitas mais asneiras a insultar-lhe, dispartando a família», 1997: 76), garantindo-lhe que vai sair logo da prisão, caso assine o relatório e delate Domingos, suposto chefe de um dos grupos anticolonialistas. Mas o preso, recordando as «conversas com o chicote sempre nas costas, o cigarro a lhe queimar na orelha ou ainda chapadas das matubas» (1997: 76), percebe algum perigo no ar e recusa-se, sublinhando que se encontra na prisão há três meses mesmo não tendo culpa, espancado todos os dias. Como Dina, também Lucas Matesso tem um «bicho […] a roer na barriga» (1997: 77) que, todavia, não representa alguma consciencialização (pois ele já tem uma consciência social), mas aparece por causa de uma necessidade prática, quotidiana: a falta de comida. De volta à cela, o chefe pergunta ao protagonista se tinha recebido o fato e ele sente-se confuso: não fala nada, percebendo que é bom prestar atenção porque o homem cruel está a preparar com certeza uma ratoeira e não pode deitar a perder o trabalho dos seus companheiros de luta. A partir de agora a violência, que será explícita na terceira e última parte do conto, é antecipada quer nos pensamentos e no medo constante de Lucas Matesso («O corpo ficou pequeno de frio, o medo lhe correu ainda no sangue quando pensou talvez mesmo estava-se preparar para lhe deixar morto com as pancadas. Medroso não era, mas, cada vez que sentia o chicote de cavalo-marinho na pele, cortava-lhe mesmo lá dentro» 1997: 78), sujeito a práticas brutais diárias, quer no prazer perverso saboreado pelo chefe Reis. De facto, depois de ter descosido o pijama destinado ao preso, esperando que pudessem encontrar um recado de terrorista, sem successo, Reis afasta-se na direção do quarto dos interrogatórios, «rindo para dentro dele, satisfeito com o que ia fazer». (1997: 81)
Representada sem filtros atenuantes, nua e crua, a violência abre e permeia a última parte da narração, onde é forte o contraste entre a impotência de Lucas Matesso, acostumado ao turvo hábito dos guardas, e a ferocidade destes últimos, que quase perdem de vista o objetivo da tortura, ou seja, a confissão do preso:
E o chicote atirava-se para lhe apanhar nas costas, na frente, torcendo-lhe o corpo que ele queria ainda fazer ficar direito, quieto, e abrindo a boca que ele queria mesmo fechada, calada, sem uma palavra de perdão para esses homens, três meses ali e sempre com a pancada no corpo, na cabeça, parecia a vida deles não sabia mais nada, só bater, só arrear. (1997: 81)
Mais uma vez, o medo do protagonista é enorme até que desaparece com a dor que cresce: teria morrido para não confessar o nome do seu companheiro de luta procurado pelos guardas. A violência e as ofensas sofridas são cada vez mais rápidas e contínuas, a dor aumenta, a barriga contrai-se, dela sai água verde misturada no sangue, no suor de um homem que não come há dias. Os guardas batem-lhe e jogam-lhe água fria que, misturada com os seus líquidos, recorda-lhe o Lukala, o rio da sua terra, «vagaroso e seguro, sem medo» (1997: 83): de repente a dor e a imagem do chicote desaparecem, uma força nova atravessa-o e permite-lhe resistir. Por fim, na solidão e na escuridão da sua cela, ocorre fugaz a lembrança feliz da sua mulher durante a visita do dia anterior: ao seu lado, as roupas em farrapos que a mulher tinha passado a ferro e um prato amorosamente preparado. A dor desaparece definitivamente e Lucas Matesso consegue rir, consciente do equívoco, explicado pelo autor aos leitores: «Essa comida de feijão de azeite-palma com peixe de azeite-palma, a banana e tudo, que toda a gente nos musseques tem só a mania de chamar «de fato completo» (1997: 86). Como ficou dito antes, os guardas, alheios à realidade cultural dos musseques, não sabem que o «fato completo» é um prato típico angolano. Portanto, além da denúncia da violência brutal, cega e gratuita à qual eram submetidos os presos políticos, o conto representa também, metaforicamente, a ignorância linguística e cultural dos torturadores que, todavia, amplifica a violência sofrida pelo protagonista. De qualquer forma, este último, embora seja uma vítima inerme das perversões dos opressores, ao nível de resistência cultural ganha uma pequena vitória. Nestes contos o escritor já começa a dar forma à real situação de multilinguismo de Angola, determinada pela presença de vários grupos étnicos, transformando-a numa reivindicação cultural e política, que será dominante na restante produção. Na sua escrita ele incorporará cada vez mais usos que os falantes da sua terra criam, «inventando caminhos para fazer que a língua exprima o universo de seus personagens». (Chaves, 2000: 96) Assim, destruindo o modelo padrão do português europeu, os protagonistas das suas «estórias» acabam por alcançar a liberdade através das próprias modalidades expressivas.
5. LUUANDA: UMA REVOLUÇÃO QUE PARTE DA LÍNGUA
Em 1963 dois dos três contos de Luuanda – escritos no cárcere de Tarrafal e de lá saídos através de vários estratagemas, graças à ajuda de Linda, a esposa do escritor, e outros amigos – foram enviados para o Concurso Literário da Anangola. O autor, que ao escrevê-los tinha utilizado o pseudónimo Vinteoito, ganhou o primeiro e o segundo Prémio de Ficção. Entregado de maneira clandestina para o concurso Maria José Abrantes Mota Veiga de Luanda, em 1964 o livro obteve novamente o primeiro prémio e, no ano seguinte, ganhou também o Grande Prémio da Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores. Todavia, após apenas cinco dias, chegou um telegrama da Agência Nacional de Informação, depois publicado no “Diário de Notícias” de Lisboa, no qual era anunciada a verdadeira identidade do autor, que tinha utilizado um outro pseudónimo: Mateus da Graça. Uma minuciosa campanha manipulatória por parte do regime não demorou a partir; o júri e o presidente foram forçados a demitir-se, os membros da SPE foram presos e, após a realização de atos vandálicos, a sede da associação foi fechada, a 21 de maio, e o prémio foi suspenso.15
Luuanda constitui um ponto de ruptura com os primeiros textos do autor, representando o início consciente de uma reivindicação de autonomia (linguística, política e cultural) através de uma língua trabalhada a partir de uma transgressão do português europeu, que se torna meio de denúncia da situação colonial e exaltação da identidade angolana.16 De facto, é principalmente nesta língua, portadora da visão de um mundo novo e descolonizado, que reside o caráter revolucionário dos contos, elaborados a começar por situações verdadeiras em contextos definidos do ponto de vista geográfico e social. Portanto, o problema do prémio atribuído ao livro pela SPE tinha a ver não só com o facto de o autor – um desconhecido escritor angolano – estar detido por ser acusado de terrorismo, mas também com a língua da obra. O prémio, então, constituía um ato deliberadamente político no Portugal salazarista, poucos anos antes da queda do regime. O próprio escritor reconheceu que provavelmente o governo tinha percebido que as «estórias» de Luuanda se configuravam como a afirmação de uma enorme diferença cultural, a partir da qual era possível reivindicar a autodeterminação e a independência. (Vieira apud Desti, 1990: 137)
Ao mesmo tempo, a cidade de Luanda é o pano de fundo e o sujeito principal da narração, com as experiências dos seus habitantes, seres marginais que a povoam e que denunciam a iniquidade do sistema colonial, representado pela presença constante e opressiva da polícia, desde o início até o fim do livro (em particular, o segundo conto realiza-se entre o cárcere e a esquadra). A alienação dos protagonistas num contexto fortemente racista e de marginalização marca as ações e os pensamentos deles, que se movem entre a luta pela sobrevivência do primeiro conto, onde a comida se torna mais importante do que o amor, e a solidão do último, a única capaz de resolver uma briga comum e, duma forma mais ampla, o sofrimento provocado pela exploração dos colonizadores, abrindo o caminho para a emancipação do povo angolano. As histórias narradas revelam ao mundo que Angola, colónia portuguesa, tinha especificidades culturais próprias, diferentes das da mãe-pátria, através duma linguagem que, afastando-se da modalidade de expressão imposta pelo colonizador, tinha desenvolvido características originais, misturando-se com as línguas dos colonizados, revelando, assim, a riqueza da diversidade.
Numa entrevista concedida a Rita Chaves e Jacqueline Kaczorowski em 2015, o escritor salienta a afirmação desta diferença cultural, finalmente reconhecida na sua preciosidade e na sua utilidade, no âmbito de um processo de apropriação de uma independência que, partindo de uma recriação da linguagem, não fosse apenas linguística, mas também política e cultural:
[…] mesmo escrevendo na língua do colonizador, o colonizador lê e percebe que «É minha língua, mas não é minha língua». E isso era o argumento que nós tínhamos para essa diferença cultural, nos próprios termos culturais que eles nos impuseram. Dava-nos legitimidade para a autonomia ou a independência, ou o que fosse: havia uma diferença. E eles não podiam rasurar essa diferença. E, sobretudo, nós estávamos legitimados a pedir um outro tipo de relação, porque já tínhamos uma diferença que era cultural, e não era uma questão só de haver o Movimento dos Intelectuais de Angola, não! O que depois percebi é que, fazendo aquilo, era mais do que uma intenção literária; havia um substrato cultural que justificava esta intenção. E se havia substrato cultural é porque foi formado durante muito tempo, muitas décadas, ou séculos, sei lá quanto foi. E que essa diferença nos dava razão. (2015: 194)
Não por acaso, na introdução que abre esta entrevista as autoras sublinham a importância de ouvir os depoimentos de alguns escritores «não para encontrar em suas vozes a melhor explicação de suas obras, mas porque elas nos trazem um conjunto de referências que não estão consolidadas em nosso universo cultural e a História ainda não pôde configurar». (2015: 177) Luandino Vieira faz parte, obviamente, deste conjunto, em virtude da sua capacidade de guiar o itinerário da formação da literatura do seu país através de uma contribuição ao mesmo tempo literária, linguística e política, no âmbito de um convulsionado processo histórico que levara à independência. Como já amplamente salientado, este procedimento de criação de uma literatura autenticamente angolana, ao mesmo tempo sustentada por anseios universais, resultou de um projeto elaborado na clandestinidade e na prisão, ou seja, uma condição e um espaço excecionais que unem a produção dos repertórios de outros escritores africanos de língua portuguesa, de acordo com as autoras acima mencionadas. (ivi) Portanto, numa perspetiva que vai além dos estudos literários africanos de língua portuguesa, para ter uma abordagem que considere o valor global desta literatura sem cair em reivindicações estereotipadas e, de uma certa forma, inconscientemente discriminatórias, considera-se útil e fundamental mencionar também uma reflexão recentemente desenvolvida pelo jornalista brasileiro Jamil Chade após a entrega do Prémio Nobel concedido pela Academia Sueca, numa carta dirigida à comissão organizadora. Sem de modo algum querer desvalorizar a merecida vencedora desta edição (2022), Annie Ernaux, o jornalista pergunta-se – em tom irónico e provocador – se os escritores que escrevem em inglês, francês ou alemão são superiores aos outros, salientando que, nas primeiras três décadas do prémio, os vencedores foram europeus e nos últimos dez anos apenas um prémio foi atribuído fora do eixo Europa-EUA. Se o prémio pretende ser universal, onde se encontra o conceito de «universalidade» nos critérios da seleção, onde estão as vozes dos marginalizados e os crimes do colonialismo se as narrações quase nunca vêm dos oprimidos? E prossegue:
O mundo passa por rápidas e profundas transformações. Hoje não se mede mais a distância em quilômetros. Mas em direitos. As placas tectônicas da geopolítica se movem e, com ela, os centros de poder e os polos de produção de arte. Referência, o prêmio que sai de seu instituto tem um papel fundamental a desempenhar. Mas, ao escolher olhar para o mundo, vocês prestariam um enorme serviço para a humanidade e abrissem as janelas para o diálogo e para a compreensão mútua. O mundo clama por isso, inclusive para garantir nossa sobrevivência. A descolonização não é uma mera iniciativa de ampliar a diversidade. Não basta “dar voz”. […] A arte é política, como tudo mais em nossas vidas. Descolonizar é ajudar a promover uma mudança cognitiva de nossa existência e da relação entre as diferentes culturas como forma de superar uma tensão insuportável. (Chade, 2022)
O pedido de «descolonização» de um prémio de cunho internacional adquire múltiplos significados no âmbito da reflexão que levámos adiante até aqui: isto é, uma ampliação de perspetivas num mundo cada vez mais interligado, onde os crimes do colonialismo não podem ser conhecimento de nicho para um público restrito de ouvintes ou de especialistas do setor. Mas isso não significa apenas fazer uma pequena concessão a estas vozes: é preciso, então, mudar de paradigma, ou seja, promover uma mudança cognitiva da nossa existência e dos nossos parâmetros para ultrapassar as distâncias culturais e assumir a diversidade como parte integrante da universalidade. Aquela universalidade da qual Luandino Vieira, mesmo partindo da elaboração de uma literatura enraizada num contexto fortemente definido do ponto de vista geográfico, político e social, foi sempre porta-voz através da sua escrita inconveniente, apaixonada e revolucionária. Uma escrita que, fixando e divulgando a memória individual e coletiva de lutas, torturas e gritos de resgate de um povo inteiro submetido à brutalidade da colonização, se tornou um instrumento poderoso de oposição à opressão portuguesa e de elaboração de uma identidade nacional, cuja peculiaridade se encontra no reconhecimento e na valorização da diversidade que a integra. Uma escrita que sempre foi uma homenagem à vida mesmo nas condições mais adversas, um repositório de memórias dolorosas mas necessárias para seguir em frente, uma forma multifacetada de resistência psicológica, intelectual e política a qualquer forma de repressão. E ainda uma chave de acesso a uma nova dimensão temporal para vencer a alienação da nossa época, uma declaração de amor incondicional dirigida aos homens todos, num percurso ao mesmo tempo individual e coletivo: numa palavra, universal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Agência Lusa, “Luandino Vieira recusou Prémio Camões por já não escrever há muito tempo”. Em Rtp Notícias, 3/3/2007 <https://www.rtp.pt/noticias/cultura/luandino-vieira-recusou-premio-camoes-por-ja-nao-escrever-ha-muito-tempo_n160185> (accesso a 11 de outubro de 2022).
Chade, J. (2022). “Carta ao Nobel: descolonize-se, urgentemente”. Em Uol.br, 8/10/2022 <https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/10/09/carta-ao-nobel-de-literatura-descolonize-se-urgentemente.amp.htm?fbclid=IwAR0a-GEz9PPL_KzTDZ5gHdHO5BIhPEyc8zN2jadYM4vcjAkgSs8GckS8Ghs> (accesso a 10 de outubro de 2022).
Desti, R., “Nota” in Vieira, L., Luuanda. Traduzione di Eadem. Milano, Feltrinelli, 1990, 137–141.
Ercolessi, M.C., L’Angola indipendente. Roma, Carocci, 2011.
Hamilton, R. G., Literatura africana, literatura necessária. Angola. Lisboa, Edições 70, 1981.
Laranjeira, P., Literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa, Universidade Aberta, 1995.
Lucas, I., “Luandino Vieira recusa Camões por razões pessoais”. Em Diário de Notícias 25/05/2006 < https://www.dn.pt/arquivo/2006/luandino-vieira-recusa-camoes-por-razoes-pessoais-641087.html > (accesso a 11 de outubro de 2022).
Todorov, T., Gli abusi della memoria. Napoli, Ipermedium libri, 1996.
Todorov, T., Memoria del male, tentazione del bene. Milano, Garzanti, 2001.
Vieira, L., Vidas Novas. Estórias. Lisboa, Edições 70, 1997.
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1 Como sublinha Russell G. Hamilton, Luandino Vieira é um dos autores angolanos que mais contribuiu para a primazia da cidade de Luanda na narrativa de Angola: «Na sua obra, Luanda torna-se quase uma personagem, e o escritor tem personificado a cidade no seu nome, o qual é mais do que uma alcunha; Luandino è nom de plume, nom de guerre e uma designação com que o homem se identifica com o seu meio». (1981: 130)
2 Língua bantu falada em Angola pelos ambundos.
3 Sublinhar a própria cultura é uma necessidade que tem origem no maniqueísmo típico das realidades do mundo colonial, de acordo com Frantz Fannon. O colonizado, considerado desprovido de valores, ética e cultura, era sempre visto como o mal absoluto: «Come ad illustrare il carattere totalitario dello sfruttamento coloniale, il colono fa del colonizzato una specie di quintessenza del male. […] L’indigeno lo si dichiara impermeabile all’etica, assenza di valori, ma anche negazione dei valori. […] Elemento corrosivo, che distrugge tutto ciò che l’avvicina, elemento deformante, che travisa tutto quel che si riferisce all’estetica o alla morale, depositario di forze malefiche, strumento inconscio e irrecuperabile di forze cieche». (1962 :37)
4 No ano seguinte, o escritor declarou que o não ter editado livros há longos anos teve um peso na decisão de recusar o prémio Camões, acrescentando que «teria sido uma grande injustiça para os escritores que estavam a editar regularmente». Cfr. Agência Lusa, “Luandino Vieira recusou Prémio Camões por já não escrever há muito tempo”, Rtp Notícias 3/3/2007 <https://www.rtp.pt/noticias/cultura/luandino-vieira-recusou-premio-camoes-por-ja-nao-escrever-ha-muito-tempo_n160185> e Isabel Lucas, “Luandino Vieira recusa Camões por razões pessoais”, Diário de Notícias 25/05/2006 <https://www.dn.pt/arquivo/2006/luandino-vieira-recusa-camoes-por-razoes-pessoais-641087.html> accesso a 11 de outubro de 2022
5 Luandino Vieira utilizou a designação de «estória» para indicar as suas narrativas mais extensas de que o conto e menos desenvolvidas de que a novela ou o romance, de maneira semelhante a um famoso autor brasileiro, Guimarães Rosa. Para os dois, a «estória» era diferente da «história»: funcionava como uma fábula de cunho moral para Luandino e como lenda tradicional popular para Guimarães. (Da Cunha 2012 :171)
6 Estas últimas, nas constituições de 1822 a 1911, eram chamadas “províncias ultramarinas”, sendo fruto de uma política de assimilação.
7 Em 1575 o português Paulo Dias de Novais chegou a Angola, com 100 famílias de colonos e 400 soldados. Entre os seus principais objetivos assinalam-se a exploração dos recursos naturais e a promoção do tráfico negreiro para formar um mercado extenso.
8 Os historiadores acreditam que as recordações das testemunhas, na maioria dos casos, não podem ser submetidas ao exame especificamente histórico e portanto não possuem valor de verdade. Por sua vez, as testemunhas desconfiam nos historiadores por não terem experimentado pessoalmente os acontecimentos que descrevem.
9 O próprio escritor afirma: «[…] Uma coleção de pedaços que cortam e vivem da sequência múltipla em que se encaixam. Emersões do passado. Espaços de uma possível salvação». (Vieira 2015: 15)
10 De acordo com o dicionário da Porto Editora, o termo musseque (do quimbundo mu seke, ou seja, «local arenoso») indica um bairro suburbano da cidade de Luanda ocupado por população com menos recursos. (2014: 1104)
11 Mais adiante uma cena parecida, em que a alegria das crianças está relacionada com um menor controle da polícia: «A noite chegava pelo dia fora e a luz de azeite-palma cobria os risos dos monandengues brincando, as falas das pessoas nas portas gozando os bocados de vento, na hora que os jipes já passavam devagar, a espreitar». (Vieira, 1997: 15)
12 Prosseguindo na leitura ficamos a saber que Mabunda tinha ajudado Dina quando se tornou órfã, oferecendo-lhe vestidos e comida, como uma mãe adoptiva que, paradoxalmente e tristemente, teria conduzido a menina à prostituição, cuidando das suas necessidades dispensáveis (como, por exemplo, o aprender a comportar-se bem durante os serviços).
13 A comparação com o rato é frequente no conto, para sublinhar a crueldade do chefe e do guarda, estabelecendo uma ligação entre a aparência física repelente a feiura moral.
14 Esta referência está relacionada com participantes da União das Populações Angolanas (UPA), antiga União das Populações do Norte de Angola (UPNA) que lutavam para restaurar o antico reino do Kongo em território angolano.
15 Em Portugal o livro foi proibido mas continuou a circular clandestinamente. Em 1972 Joaquim Soares da Costa, o diretor das Edições 70, publicou a segunda edição revista de Luuanda. Embora a editora tenha sido multada pelo Secretariado Nacional de Informação (SNI), todas as cópias desta edição foram vendidas. Após este episódio, todavia, nenhuma editora portuguesa esteve autorizada a publicar obras do escritor até à Revolução de 25 de abril.
16 Não por acaso, a produção do escritor foi considerada durante muito tempo hermética, até quando, na década de 1980, surgiram alguns glossários que facilitaram a leitura e a compreensão para o público não angolano.